Publicado originalmente no Diálogos do Sul em 29 de julho. Este artigo foi escrito em português, mas foi arquivado em “espanhol”
Em 2 de maio, o Departamento de Estado anunciou “a designação das gangues paramilitares haitianas Viv Ansanm e Gran Grif como Organizações Terroristas Estrangeiras (FTOs) e Terroristas Globais Especialmente Designados (SDGTs)”.
Tal legislação abre caminho para que o governo de Donald Trump e seu subalterno colonial, o presidente de El Salvador, Nayib Bukele, possam potencialmente prender os líderes das gangues no infame CECOT, o Centro de Confinamento de Terroristas, de El Salvador.
Atualmente, 252 venezuelanos, sequestrados nas ruas dos EUA, estão detidos na prisão de segurança máxima junto a dezenas de milhares de prisioneiros salvadorenhos de bairros operários, muitos dos quais nunca tiveram devido processo legal. Trump e seu gabinete de bilionários estão novamente testando os limites para ver se conseguem sequestrar estrangeiros e interná-los em gulags no exterior.
Para entender a violenta coalizão de gangues Viv Ansanm, que está em 85% do território da capital haitiana, Porto Príncipe, e se expande diariamente, é imperativo compreender o papel do Haiti na economia política internacional. Para entender por que esses grupos paramilitares são destinatários de centenas de milhares de armas dos EUA, é necessário compreender um tabu bilionário há muito no centro da elite política haitiana: a cocaína.
Uma joia da coroa no império global das drogas
No verão de 2023, co-escrevi um artigo para o North American Council on Latin America (NACLA) com um veterano da marinha anti-guerra, documentando por que e como o Haiti está inundado por centenas de milhares de armas dos EUA. Ao ouvir as massas haitianas e pesquisar o impacto das gangues paramilitares em suas vidas, percebi que havia outra causa raiz que não recebeu atenção suficiente: o tráfico de cocaína. Este artigo abordará de onde vêm as enormes remessas de cocaína, para onde são exportadas e como alimentam a violência incessante contra a maioria pobre e sem voz do Haiti.

As melhores estimativas indicam que o tráfico de drogas global vale US$ 650 bilhões. Para comparação, a indústria farmacêutica global vale cerca de US$ 1,5 trilhão, enquanto o petróleo tem receita global de US$ 4,5 bilhões. Drogas ilícitas estão entre as commodities mais lucrativas do Ocidente sob o capitalismo tardio.
Os Estados Unidos são de longe os maiores consumidores de drogas do mundo, com milhões de dependentes a mais que seus concorrentes mais próximos, Índia e China. O Relatório Global de Cocaína da ONU mostra as zonas de carregamento de cocaína na América do Sul e as rotas para os Estados Unidos e Europa. Cerca de 61% do suprimento global de cocaína vem da Colômbia. O que isso tem a ver com o Haiti, um país menor que o Alagoas, sem histórico de consumo de cocaína ou abuso de drogas em sua cultura?
Para as massas haitianas tentando sobreviver à guerra civil paramilitar, o kleren — espécie de cachaça produzida de forma caseira — é a “droga de escolha” local. Moradores dos guetos locais, agora aglomerados em escolas e repartições públicas que funcionam como campos de refugiados improvisados, há dezenas de variações dessa cachaça caseira, como bwa kochon (“madeira de porco”), 2 zewo (“2 zero”) e yo ki pou pè (“as gangues é que deveriam ter medo da gente”). Nas últimas décadas, desde a dinastia Duvalier [1957-1986], só os ricos e poderosos das colinas de Petion-Ville tinham cultura de usar a cara droga festiva, chamada e pronunciada kokayin em kreyòl.
O povo haitiano esquecido tem outros problemas. Em 2024, os paramilitares, liderados por seu porta-voz carismático, Jimmy “Barbecue” Chérizier, realizaram 5.601 assassinatos, 1.494 sequestros e centenas de milhares de deslocamentos. Isso é apenas a violência documentada, já que muitos crimes contra as massas haitianas excluídas são ignorados.
Em um estudo importante chamado Haiti’s Long Struggle: Military occupation, gang violence, and popular uprising, estudiosos e ativistas haitianos resumem a campanha paramilitar de violência que destruiu o futuro de milhões. O tráfico internacional de cocaína e maconha fornece contexto-chave para explicar por que Porto Príncipe é indiscutivelmente a cidade mais violenta do mundo.
Presidente vitalício aos 19 anos e o Palácio da Coca
Elizabeth Abbott revela segredos e fofocas de bastidores em seu relato “Haiti: Os Duvalier e seu Legado”, de 1988. A jornalista canadense se casou com o hoteleiro haitiano Joseph Namphy, tornando-se cunhada do Tenente-General Henri Namphy, chefe do Estado-Maior do Exército de Duvalier de 1984 a 1987, antes de se tornar o 36º presidente do Haiti. Abbott descreve o papel da cocaína durante o governo brutal de Jean-Claude Duvalier [1971–1986] e dos Tonton Macoutes [N.T: milícia paramilitar haitiana criada em 1959 por François Duvalier, também conhecido como “Papa Doc], de 1971 a 1986.
Neste trecho, ela foca no sogro de Duvalier, Ernest Bennett:
Os Bennetts estão traficando drogas desde 1980 e, com seus associados, movimentaram centenas de milhões de dólares em cocaína para os EUA.
A “primeira-dama”, a infame Michèle Bennett Duvalier, a “Imelda Marcos” do Caribe, impulsionada por dinheiro de cocaína, fazia compras globais em Paris, Londres e Nova York. Seu pai fundou a ambiciosa Haiti Air, a única companhia aérea nacional. Foi um empreendimento econômico desastroso, com prejuízo relatado de US$ 30 mil por dia. O que perderam em ineficiência e incompetência, recuperaram com sobras da “mentira branca” norte-americana.

O empreendimento fraudulento, Haiti Air, proporcionou a Bennett:
a oportunidade não só de armazenar a droga para seus parceiros colombianos e coordenar transbordos, mas também de operar ele próprio o tráfico. Ele tinha grandes quantidades para vender, pois, como ‘padrinho’ de quatro ou cinco quadrilhas colombianas, geralmente era pago em cocaína.
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Após a queda da ditadura em 1986:
remessas de cocaína foram encontradas no hospital Bon Repos da esposa de Duvalier, Michèle, em sua casa de férias em Fermathe, na concessionária de seu pai, e até mesmo no palácio, junto com centenas de seringas e cachimbos de coca.

Quando a embaixada dos EUA protegeu o casal mais rico do Haiti e os conduziu ao exílio em Paris, eles embarcaram seu voo de fuga carregando centenas de milhares de dólares em obras de arte e joias.
O presidente em exercício, Jean-Claude Duvalier, sua família e seus principais sócios de negócios eram agentes pagos de departamentos de inteligência dos EUA e narcoestados sul-americanos. Mas quem se importaria com um escândalo ao estilo Irã-Contras em um país rotulado pelo Ocidente como um “lugar desprezível”? A guerra da desinformação há séculos pavimentou o caminho para o empobrecimento da nação de Dessalines, Cristophe e Peralte.
Tragédia, violência e tráfico
Em 1995, Tim Schwartz, doutorando em antropologia na Universidade da Flórida, chegou à vila de Jean Makout, no remoto noroeste haitiano, para conduzir pesquisas sobre criação de filhos e costumes matrimoniais. Era o requisito para que pudesse trabalhar para organizações não governamentais (ONGs) estrangeiras como a Care, em “projetos agrários, comerciais e de saúde”.
Como qualquer estrangeiro que vai viver no Haiti, Schwartz se deparou com mais do que esperava.
Em seu envolvente livro de 2010, Travesty in Haiti: A True Account of Christian Missions, Orphanages, Food Aid, Fraud and Drug Trafficking, ele narra suas muitas aventuras no Haiti rural. O capítulo final, “Colômbia e o tráfico de drogas ao resgate”, documenta o pouco conhecido papel do Haiti como ponto de trânsito para cocaína colombiana rumo aos mercados lucrativos do Ocidente.

O estudioso de longa data de tudo que diz respeito ao Haiti relata como “homens hispânicos” deslocados do contexto circulavam pelas aldeias e vilarejos haitianos em SUVs com vidros escurecidos, ostentando Uzis de fabricação israelense. Portos e aeroportos improvisados eram constantemente construídos para facilitar o tráfico intercontinental. Ainda hoje, essas pistas e portos clandestinos proliferam pelo interior abandonado e costas porosas do Haiti — país que conta com um único navio da guarda costeira funcionando.
Schwartz narra o episódio em que os moradores famintos emboscaram um avião e apreenderam “4.500 kg de cocaína colombiana, um carregamento avaliado em pelo menos US$ 100 milhões nas ruas de Miami ou Nova York”. O campesinato e as comunidades pesqueiras, há muito explorados, apenas imitavam autoridades de Porto Príncipe, que pensavam primeiro em si próprios e nunca no povo. Em poucos dias, policiais e outros burocratas apareceram espancando os locais em busca do seu butim.
Num piscar de olhos, graças a milhões de consumidores ocidentais de cocaína, o vilarejo de Jean Makout foi catapultada do século 19 à modernidade, com importações de luxo, SUVs e vistos. Embriagados com a sorte repentina de quem enriqueceu do dia para a noite, certos amigos e moradores da pequena cidade chegaram a convidar o próprio Schwartz a aproveitar a bonança coletiva. O visitante traumatizado prossegue:
Minha fé no desenvolvimento havia sido destruída. Já não tinha vontade de ser antropólogo, e planejava deixar o Haiti em breve. Permaneci um tempo na aldeia, observando enquanto pessoas que conhecia havia anos — pastores, empresários, policiais, professores, gente que jamais suspeitei que pudesse estar envolvida com drogas, chegavam e compravam quilos de cocaína
O capítulo final das observações etnográficas de Schwartz parece saído diretamente do teatro do absurdo. O estudioso e residente de longa data no Haiti não seria o primeiro, nem o último estrangeiro a se declarar derrotado, ao compartilhar sua conclusão final e cínica:
Penso na maior ironia de todas: como o povo da aldeia e da vila — muitos dos quais realmente estão entre os mais pobres dos pobres — fez mais em um único dia para melhorar suas vidas do que o governo haitiano e todas as ONGs estrangeiras conseguiram em meio século… ao interceptar um carregamento de cocaína.
Os bandidos legais
O ex-superastro do konpa (música dançante haitiana) que se tornou presidente, Michel Martelly [2011–2016], se gabava, em 2008, dos “bandidos legais” que comandavam o Haiti.
Em seu livro de 2024, Aid State: Elite Panic, Disaster Capitalism, and the Battle to Control Haiti, Jake Johnston dedica o capítulo 19 aos “bandidos legais”, traçando o fio condutor da cocaína na política haitiana. Sua obra documenta como o chefão Fernando Burgos-Martinez era o principal homem de Pablo Escobar e do cartel de Medellín no Haiti. O magnata operava o sofisticado hotel El Rancho, em Pétion-Ville, traficando drogas e lavando dinheiro na ordem de dezenas de milhões de dólares por semana.

Ele trabalhava em estreita colaboração com o chefe da polícia, Michel François, amigo próximo então futuro presidente Martelly. A tomada de poder em setembro de 1991 pelos generais corruptos, cleptocratas e agentes da inteligência dos Estados Unidos contra o presidente democraticamente eleito Jean-Bertrand Aristide [1991; 1994–1996; 2001–2004] foi apelidada por muitos de “golpe da cocaína”.

O agente patrocinado pelos Estados Unidos e combatente violento Guy Philippe, que liderou o segundo golpe paramilitar de 2004 contra Jean-Bertrand Aristide, cumpriu nove anos de prisão federal nos Estados Unidos por tráfico de drogas e lavagem de dinheiro. Philippe afirma que os EUA vieram atrás dele, apesar de sua lealdade, porque ele estava prestes a revelar nomes. Cercado por sua própria unidade paramilitar, Philippe está de volta ao Haiti, uma geração depois, repetindo seus antigos métodos e fiel ao mesmo mestre.

Em Aid State, Johnston segue documentando caso após caso de associados de Michel Martelly (2011–2016), informantes da DEA e empresários haitiano-americanos ricos flagrados com carregamentos massivos de cocaína. Não importava o tamanho da apreensão ou a fama do criminoso, o recado já havia sido dado em 1988 pela música Illegal Business, de KRS-One e Boogie Down Productions: “O negócio da cocaína controla os Estados Unidos, o negócio ilegal controla os Estados Unidos”.
Sob condição de anonimato, um líder comunitário de um bairro do centro de Porto Príncipe — saqueado pelo grupo Viv Ansanm (Viver Juntos, no sentido de que as gangues não mais lutarão entre si, mas se unirão) — explicou a perspectiva haitiana. Makenson, um dos mais de um milhão de haitianos deslocados pelas milícias da morte, me disse:
A DEA, a CIA e os verdadeiros detentores do poder nem sempre conseguem aprovar seus financiamentos legalmente. Há muito tempo passaram a agir por conta própria, financiando ilegalmente suas operações subterrâneas, tomadas de poder e golpes por meio do tráfico de drogas e de armas. Isso há muito é evidente para o povo haitiano. Não produzimos essas coisas aqui no Haiti, nem em nosso país vizinho, a República Dominicana. Se investigarmos demais e falarmos, também desapareceremos. Muitos conhecem a dominação imperial aberta dos Estados Unidos, mas há também um componente clandestino.
Silenciando os denunciantes
O ex-agente da Agência de Combate às Drogas dos Estados Unidos (DEA), Keith McNichols, tentou expor a corrupção da agência no Haiti em 2015. Por ser um denunciante (whistleblower), McNichols foi forçado a deixar o país e perdeu o emprego.
Seu advogado, Tom Devine, explicou a burocracia de corrupção dentro da DEA:
A agência se fecha para proteger e evitar que o público tome conhecimento de núcleos corruptos. Existe um sistema bem consolidado de apadrinhamento entre aqueles na linha de frente e os escritórios internos de responsabilização da DEA, além da gestão regional e federal.
Atualmente, McNichols e Devine trabalham com o Government Accountability Project, tentando pressionar a agência, que se mantém em silêncio, a agir com transparência. Até membros do Congresso têm concordado com eles e criticado abertamente a falta de responsabilização da DEA.
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O Miami Herald realizou uma série de publicações sobre como “os estados do sul do Haiti se tornaram pontos de entrada críticos para a cocaína vinda da América do Sul e para a maconha vinda do Caribe, sendo o Haiti um ponto de transbordo para ambas”. Um mês antes das eleições de 2024, a Casa Branca do presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, identificou o Haiti “em uma lista de 23 países designados como principais pontos de trânsito ou produtores de drogas ilícitas”.
Em seguida, o governo Biden desativou suas operações da DEA no Haiti e em outros 13 países. Isso ocorre enquanto a DEA está prestes a receber “outro orçamento recorde — US$ 3,7 bilhões para o ano fiscal de 2025 — para continuar e expandir sua ‘guerra às drogas’.” Seria por isso que as massas silenciadas do Haiti vêm dizendo há décadas que armas e drogas nunca foram problemas próprios do país, mas sim parte de yon pwojè lamò (um projeto de morte), imposto de cima por forças internacionais poderosas.
Um relatório aprofundado do Center for Economic and Policy Research fornece provas claras das conexões profundas entre a DEA, informantes confidenciais, os 18 assassinos colombianos do presidente Jovenel Moïse, a inteligência dos Estados Unidos e uma empresa de segurança privada com sede na Flórida. O New York Times afirma que Jovenel Moïse foi assassinado em 2021 porque
Ele estava trabalhando em uma lista de políticos e empresários poderosos envolvidos no tráfico de drogas no Haiti, com a intenção de entregar o dossiê ao governo norte-americano, segundo quatro conselheiros e autoridades haitianos encarregados de elaborar o documento.
Porta-vozes corporativos, como o New York Times, oferecem migalhas de verdade, mas não vão além disso — muito menos tomam qualquer ação para deter a violência brutal que domina a capital haitiana. Como nos lembram os palestinos, os centros de pensamento, os meios de comunicação e as burocracias do imperialismo vão registrar os massacres e a carnificina, mas jamais confrontarão as causas profundas do genocídio.
Enquanto muitos estadunidenses descartariam rapidamente essa prova incontestável da conivência de alto nível com o narcotráfico como sendo o enredo de um fictício filme da CIA em Hollywood, essa é a realidade cotidiana do povo haitiano.
Barbecue e os demais senhores da guerra reuniram suas quadrilhas paramilitares em uma aliança coordenada chamada Viv Ansanm (Viver Juntos), em 29 de fevereiro de 2024, com o objetivo de organizar seus grandes negócios. Os haitianos são os primeiros a lembrar que há forças muito acima desses chefes — nas colinas do paraíso burguês de Pétion-Ville e nos bastidores de Washington — que puxam os fios por trás das marionetes.
Embora não haja nada de haitiano na cocaína, esse pó precioso financia a destruição deliberada e a ocupação da outrora famosa capital turística, Porto Príncipe. Embora também não haja nada de haitiano nos grupos criminosos armados, a Viv Ansanm de hoje — atuando direta e indiretamente como tropas de choque da política externa dos Estados Unidos — usurpou o destino do único país a derrubar a escravidão e organizar uma revolução anticolonial.
Mentiras brancas, morte haitiana
Há décadas, o Haiti funciona como um território sem lei, um campo livre onde bilhões de dólares em lucros com a cocaína enriquecem os bolsos de uns poucos escolhidos. A chamada “guerra às drogas” sempre foi, na verdade, uma guerra contra o Haiti, contra o México e contra os pobres do mundo inteiro. Os milhares de assassinatos e as centenas de milhares de deslocados causados pela aliança de quadrilhas mantêm a cocaína circulando — e os lucros astronômicos fluindo.
O presidente da Colômbia, Gustavo Petro, denunciou o papel que redes criminosas de seu país têm desempenhado no agravamento da insegurança no Haiti. Em abril de 2024, ele anunciou o desaparecimento de 1 milhão de armas, munições e explosivos dos arsenais militares colombianos — muitos dos quais teriam chegado ao Haiti junto com carregamentos de cocaína. Seu colega, o presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, fez declarações semelhantes, acusando os Estados Unidos de “decapitar o Haiti” ao facilitar o comércio ilegal de armas.
Hoje, as gangs paramilitè yo (quadrilhas paramilitares) e seus chef bandi (chefes de gangue) são os herdeiros de Duvalier e dos generais haitianos. André Johnson, conhecido como “Izo”, chefão da costeira Vilaj dè Dye, se gaba abertamente de seu cartel de drogas. Jovem, narcotraficante e rapper, explicou que a Viv Ansanm se unificou para reunir todas as redes criminosas e atacar Sodo (Saut-d’Eau), após a perda de um de seus maiores carregamentos de drogas — interceptado por outra gangue local.
O grupo Lamò san jou (Morte sem data) opera a partir de Kwadebouke (Croix-des-Bouquets) e controla rotas estratégicas de entrada e saída na fronteira com a República Dominicana. Wa Mikanò (o “rei” Micanord Altès) coordena o tráfego marítimo de importação e exportação a partir de Wharf Jérémie, um bairro dentro da maior favela do hemisfério ocidental, Cité-Soleil. Mikanò é procurado pelo recente massacre de mais de 184 moradores, em sua maioria idosos, dessa comunidade.

Quando a aliança de esquadrões da morte da Viv Ansanm precisou retirar discretamente um colaborador estrangeiro do Haiti, recorreu a contatos próximos do presidente da República Dominicana, Luis Abinader (2020 – ), para levá-lo de volta aos Estados Unidos no jato pessoal de Abinader. O livro do pesquisador Jeb Sprague, Paramilitarism and the Assault on Democracy in Haiti, mostra o papel histórico do Estado dominicano na desestabilização do país vizinho.
A fronteira entre Haiti e República Dominicana permanece fechada para os vizinhos que precisam de ajuda, mas está sempre aberta para as armas dos Estados Unidos e a cocaína sul-americana — um fluxo contínuo que mantém o Haiti aprisionado por uma engrenagem colonial de morte, não como o país mais pobre, mas como o mais explorado e saqueado do hemisfério ocidental.
Todos os profissionais bem remunerados mencionados acima atuam como comandantes da aliança paramilitar Viv Ansanm, liderada por Jimmy “Barbecue” Chérizier. Como rosto público dos grupos armados, Chérizier passa horas nas redes sociais e em entrevistas televisivas. Sempre sorridente, gaba-se de ser o “novo Jean-Jacques Dessalines do Haiti”.
Há quatro anos, Chérizier colabora com jornalistas locais e estrangeiros, promovendo uma versão distorcida da realidade de forma sádica — insistindo que, apesar de mais de 1 milhão de haitianos terem sido deslocados, tudo isso faz parte de sua “revolução”. Enquanto uma manipulação hollywoodiana da realidade confunde estrangeiros na rede social X (ex-Twitter) e no YouTube, em uma linguagem alheia ao Haiti, lideranças comunitárias haitianas seguem corajosamente narrando sua verdade coletiva.
Os moradores com quem convivi zombavam das declarações de Chérizier. Vizinhos do agora destruído bairro de Solino, na região metropolitana da capital, explicavam o papel de Chérizier e dos esquadrões da morte: um bandi (integrante de gangue) é o agente mais eficaz dos oligarcas. Diferente do militar, não usa uniforme. Diferente do policial, não tem rosto. Goza de imunidade total. Pode massacrar à vontade. Esse tipo de formulação é parte do senso comum entre as massas haitianas e seus representantes intelectuais.
O consenso nos setores populares do Haiti, para quem escuta o Kreyòl das ruas, é claro: as gangues terroristas e envolvidas com o tráfico de drogas são um projeto planejado e organizado do imperialismo. Elas há tempos buscam destruir nossa resistência revolucionária. Os agentes paramilitares desse projeto de morte portam armas dos Estados Unidos e traficam cocaína colombiana e maconha jamaicana para o Ocidente. Somos vítimas da guerra em curso contra o Haiti. Isso é exatamente o que o autor tem escutado desde a revolta de 7 de fevereiro de 2021, de grupos comunitários haitianos e do forte universo cultural do vodu.
Presos entre duas ocupações
É revelador que as próprias massas utilizem a palavra tewowis (terroristas) para descrever Barbecue, Vitalom, Lamo San Jou e seus soldados pagos. Ninguém conhece tão bem a geografia política das gangues quanto o povo que trava diariamente uma guerra para sobreviver sob seu domínio tirânico.
Os terroristas da Viv Ansanm não permitem a existência de organizações comunitárias. A líder comunitária e feminista Astride Noël explica, no texto How the Gangs Cause Mass Cultural & Social Chaos, que elas culpam o imperialismo estadunidense tanto pelo armamento dos esquadrões paramilitares da morte quanto pelo envio de mercenários multinacionais — quenianos, salvadorenhos e outros — para invadir e ocupar o Haiti pela quarta vez em cem anos.
O povo haitiano insiste que é sua responsabilidade histórica lidar com seus estupradores, sequestradores e assassinos — não o império que os mantém sob rédeas curtas. Ezai Jules, um dos muitos líderes revolucionários que viu seu pai assassinado e seu bairro incendiado, pergunta retoricamente:
Se isso fosse uma revolução, você realmente acha que Washington e Santo Domingo (o governo da República Dominicana) permitiriam o fluxo livre de armas para Chérizier? As gangues existem para esvaziar e ocupar os bairros históricos que têm dado tanta dor de cabeça ao imperialismo.
Ezai observa ainda que “o fato de haver estrangeiros que se passam por ‘esquerdistas’ e aplaudem os esquadrões da morte mostra a nós, haitianos, que o colonialismo também pode vir da esquerda”.
As massas haitianas sabem que matar ou prender Barbecue e outros traficantes contratados no Centro de Confinamento do Terrorismo de Bukele não representa uma solução de longo prazo. Como podem os responsáveis pela doença — a contínua colonização do Haiti — se apresentar novamente como portadores da cura?
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Elas veem Barbecue como um sintoma da Dominação de Espectro Total dos Estados Unidos, não como a raiz do problema. A análise é de que o imperialismo estadunidense controla Fritz Alphonse Jean, atual presidente do Conselho Presidencial de Transição do Haiti, a aliança paramilitar e os mais de mil soldados estrangeiros, em sua maioria do Quênia, enviados pelos EUA para invadir sua terra natal. O secretário de Estado dos EUA, Marco Rubio, e o governo de Donald Trump agora atuam para enviar mais tropas da Organização dos Estados Americanos (OEA) com o objetivo de aprofundar a ocupação do Haiti.
Quem ficará preso no meio dessas duas entidades criminosas, ambas armadas e controladas pelo imperialismo?
Os haitianos não querem mais intervenções dos Estados Unidos, que já resultaram na perda de sua capital. Todos os dias, os “palestinos do Caribe” organizam-se, lutam e morrem por um futuro livre do domínio estrangeiro e das gangues, por um Haiti sem armas e drogas importadas. Quando vamos escutar as vozes dos que nunca tiveram voz, traduzir o que dizem ser intraduzível e atender às esperanças seculares dos que foram historicamente silenciados?